Este é o primeiro livro que leio de um dos nossos escritores mais respeitáveis e premiados: Mário de Carvalho. Talvez a falta de coragem para começar por um dos seus contos, romances, novelas ou textos dramatúrgicos, levou-me direta a este ensaio sobre a escrita, vocacionado para quem queira iniciar-se no «bico-de-obra do primeiro livro», com o Prémio P.E.N. Clube Ensaio 2015.

Não se trata de um livro com presunção científica, mas de uma espécie de guia prático com dicas, recomendações, observações, anotações riquíssimas para esse empreendimento que é a escrita, por vezes tão dolorosa em todo o processo, desde o atirar para trás a famigerada página em branco, passando pelas agruras do argumento, o fio condutor, o narrador, a pele das personagens, os contextos, os diálogos, aos aspetos mais técnicos e gramaticais, como o vocabulário (tão empobrecido nos dias que correm), a pontuação, as comparações, as metáforas, as expressões mais acertadas, numa apologia consolidada da «dúvida sistemática».

Esta leitura de Mário de Carvalho é um lembrete vivo sobre a quantidade (pela testadíssima qualidade) de obras e lendas fundadoras que devemos cumprir antes de nos aventurarmos numa odisseia literária com a própria assinatura. Recorre a Tchékhov para o frisar: «A arrogância é uma qualidade que fica bem aos perus». Não só porque os melhores escritores se arredam do autoelogio, mas também para lembrar que há um universo literário pelo qual já devemos ter passado e sem o qual não estaremos em condições de escrever. E isso implica sair da cápsula do nosso tempo e do nosso espaço. Há uma lista de obras notáveis, desde a Alexandria helenística, passando por todas as obras que ganharam o consenso e o reconhecimento dos clássicos: «Penso no Gilgamesh, na Ilíada e na Odisseia, n’Os Lusíadas, em todo o Shakespeare». E continua reforçando o conselho: «O leitor que vai iniciar-se na escrita literária precisa de um património, precisa de recursos, precisa de provisões, como alguém que vai enfrentar uma rota esplendorosa de paisagens, mas de longo curso de piso acidentado». Mário de Carvalho vai ainda mais longe: «Dificilmente conseguirá ser inovador e original quem não considerar os outros. Se quiser subir para certa plataforma tem de pedir ajuda aos que já lá estão, ou destroná-los».

Neste ensaio somos levados à evidência (que esquecemos na ansiedade imprudente de querer crescer sempre depressa) de que há uma dimensão da infância que devemos sempre manter acesa, a tal curiosidade infantil (não bisbilhoteira) que nos leva a indagar, a procurar, a perguntar. Escritor nenhum (dos bons) abdicará disso. Para evitar, até, a «frase feita» que sobeja sobre literatura. «Depois do futebol é, provavelmente, a arte mais bem fornecida de peritos». Com esta consciência, vai sendo estimulado um imaginário em crescendo em referências e legados. «O que distingue o escritor é esta capacidade de observação, apta a capturar em permanência o outro lado das coisas, mesmo quando parece distraída ou alheada».

E eis que entra a dimensão do outro. O outro que permite ao escritor que o processo de escrita não seja forçosamente tão solitário. Afinal, escreve-se para alguém. «São precisos dois para dançar o tango». E se para chegar ao fio da história que queremos entregar ao outro são necessários um domínio das técnicas de escrita e um imaginário repleto de referências, tão importante será reconhecer que a palavra ficção «(…) vem do latim fingo, que significa modelar, formar», numa equiparação extraordinária ao ofício do oleiro. E para tal serão necessários vários arsenais, requisitos e qualidades literárias. O autor toca na verosimilhança (o que se possa parecer com a verdade), na originalidade, no domínio exímio da linguagem, na adesão arguta aos recursos estilísticos. «Não se impõe que o destinatário acredite naquilo que lhe é contado, no sentido filosófico do convencimento. O que se procura é que não se rompa a plausibilidade».

No seu guia para a boa escrita, Mário de Carvalho faz um inventário de escritores que qualquer um de nós – apaixonados pela literatura – deve procurar conhecer melhor, numa intimidade com os seus estilos, recursos e condutas da narrativa. Não raras vezes, vemos menções ardilosas a Aristóteles, que considera ser a «cartilha-maternal do escritor». Ou a Jorge Luis Borges, «(…) porventura o mais inventivo e inquietante escritor do século XX (…)». São também dados ao nosso campo referencial os contos de Tchékhov como melhores que «muitos workshops de escrita». E ainda lembrado o romance Guerra e Paz, de Tolstoi, como o «romance dos romances», ou Seis Passeios nos Bosques da Ficção, de Umberto Eco, como um livro que Mário de Carvalho não se cansa de recomendar.

Neste livro de Mário de Carvalho ganhamos um conjunto de chaves para um compromisso mais sério e honrado com a escrita, ao mesmo tempo que assistimos a um tributo à arte da literatura, que não transmite, mas faz nascer um novo conhecimento, que temos sempre a oportunidade de reter e interpretar de novo, com os olhos sempre renovados da primeira vez, os do presente e os da nossa circunstância, para recorrer como o próprio autor o faz a Ortega y Gasset.

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