Este é, para mim, um livro de transição cronológica e interior. O mesmo é dizer, de conversão, de requalificação espiritual, de regresso a casa. Comecei a lê-lo no final do fatídico 2020 e com ele permaneci neste início de 2021. Cheguei entretanto à sua última página com o coração pleno.
José Tolentino Mendonça partilha, neste Rezar de Olhos Abertos, práticas de oração a partir dos seus próprios hábitos e da reflexão que tem vindo a consolidar ao longo dos tempos. E o discurso está, como é natural em Tolentino Mendonça, em cima do tempo. Vem para nos sacudir da dor e dos testemunhos de sofrimento e para nos reintroduzir na esperança.
Sem uma ordem estabelecida, as diferentes reflexões que vamos folheando neste mais recente livro de Tolentino Mendonça tornam-se autónomas e, ao mesmo tempo, ligadas umas às outras na medida em que todas são essenciais para esse (re)pensar a oração. Surge, desde logo, comentada a relação entre a cultura e a fé, a fé e a cultura, numa apologia seguida no âmbito do Entre | Vistas. «Uma fé desligada da cultura rapidamente se torna acantonada a uma elite espiritual, e perde a condição de acessibilidade e universalidade que é chamada a ter. Uma cultura separada da fé fica incompleta e, nesse sentido, deixa de representar dimensões e necessidades fundamentais da pessoa humana».
E para as dúvidas que nos chegam à nossa intimidade sobre como rezar, Tolentino Mendonça chama a atenção para a multiplicidade de caminhos: «Todas as formas de rezar são insuficientes. Todas são eficazes. A arte de rezar é a arte de ser, apenas isso. O essencial é que a oração não seja um mero dizer, mas um dizer-se, e um dizer-se confiado». Num desligamento imperativo face à «fixação exasperada nos resultados» e ao tempo que não temos a perder por querermos «ver logo tudo concluído».
Num outro ponto de reflexão, Tolentino Mendonça cita o escritor espanhol Manuel Vilas: «A família continua a ser o motor da história. É a nossa reserva índia». E avança nas suas próprias palavras: «Por alguma razão vital, cada um de nós precisa de uma família». A família é interpretada pelo autor como o reduto do afeto.
A propósito da crise, podemos ler uma passagem dura, mas comovedora: «Por muito que nos custe admitir, as crises podem ensinar-nos alguma coisa, podem ajudar-nos a entrar numa dimensão mais autêntica da própria existência, mesmo sabendo que elas acarretam o risco de nos lançarem também para o interior de uma turbulência que não estávamos preparados para enfrentar». E mesmo em contexto de crise, Tolentino Mendonça recorda que «uma das coisas mais urgentes a aprender é o poder da nossa vulnerabilidade». Mais do que isso: recorda-nos, ainda, um poema de Adília Lopes: «Na vida e no poema / dar menos um passo». Adverte Tolentino Mendonça: «Talvez o infinito esteja mais patente no humilde e silencioso recuo que a vida desenha do que nas formas ufanas do chegar-se à frente».
Numa ideia remate, diz: «Há sempre uma oportunidade de salvação, qualquer que seja a etapa do caminho». E, nesse caminho que a vida é, Tolentino Mendonça recorda-nos que a surpresa é a assinatura de Deus no tempo. Diz-nos, num parêntesis, mas recuperando o tema central do livro, que «a oração implica uma deslocação interior». E esta, ideia capital, será porventura a viagem fundamental que fazemos. E, para ela, assim como na vida, Tolentino Mendonça incentiva-nos a pedir caminhos, em vez de mapas. E a pedir, afinal, «um olhar que tenha realmente uma espessura de salvação». Absolutamente indispensável para um rezar de olhos abertos.
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