Rosa Montero
Tenho ideia de ter fixado, a partir de um qualquer programa televisivo cultural, no início dos anos 2000, a recomendação de A Louca da Casa, de Rosa Montero. Fascinada pela descrição, apontei o título e o nome da autora e, no meio dos meus papéis, por lá ficou o apontamento que, um dia, viria a soar-me em eco ao cruzar-me numa Feira do Livro de Lisboa com uma gigantesca mesa de livros, em saldos: aparecia à minha frente, então, A Louca da Casa. Viria a lê-lo, todavia, apenas no verão de 2014. Quando lancei o Entre | Vistas, em novembro do mesmo ano, era com ele que abria a categoria Livros em Revista. Espécie de ensaio em crise de identidade (alterna traços de autobiografia com romance), é obra de arte. Faz um levantamento das características mais íntimas da imaginação (a verdadeira louca da casa) e da memória, levando o autor a viajar entre as dúvidas e os medos mais sombrios dos escritores e, não raras vezes, os nossos. Quiçá, os de Rosa Montero.
Rosa Montero nasceu em Madrid, em 1951. Estudou Jornalismo e Psicologia e, depois de colaborações com diferentes títulos da comunicação social espanhola, passou em 1976 a escrever em exclusivo para o El País. Já com passo firme no jornalismo, em 1980, foi reconhecida com o Prémio Nacional de Jornalismo, antes de tantos outros que se lhe seguiram. A autora que já deu nome a romances, ensaios biográficos, contos infantis e recapitulações de entrevistas e crónicas, assina títulos traduzidos em mais de 20 idiomas e é Doutora Honoris Causa pela Universidade de Porto Rico. A sua obra é, de facto, muito ampla e significativa. Mas é A Louca da Casa que continua no meu ouvido a colocar-me perguntas. As mesmas que tive o privilégio de poder fazer chegar a Rosa Montero, numa generosa intermediação da escritora portuguesa, que a conhece e, como eu, a admira, Ana Margarida de Carvalho. É que A Louca da Casa continua incorrigivelmente atual.
Chamo ao seu livro A Louca da Casa um ensaio em crise de identidade, com registo de autobiografia e tons de romance. Concorda com esta visão? À distância dos 14 anos passados sobre a primeira edição, como o classifica?
Creio que é um livro mestiço, híbrido e inclassificável. Os livreiros estavam muito preocupados, porque não sabiam onde coloca-lo, se na estante de ensaio ou na de ficção. Eu considero-o um artefacto narrativo, o meu livro mais interativo, sem dúvida alguma, porque faz com o leitor o jogo da criação literária, permitindo que nela participe. O livro começa com a enganosa aparência de autobiografia, mas o leitor chega a um ponto em que a autora, ou seja, eu, mente de forma evidente. E aí o leitor pergunta-se: se esta mulher está a enganar-me nisto, em quantas coisas mais o terá feito? Resposta: em quase todas. O capítulo principal do livro, por exemplo, que se centra no desaparecimento inexplicável da minha irmã gémea, durante três dias na minha infância, é pura ficção. Não tenho nenhuma irmã, nem gémea, nem outra. Para mim, A Louca da Casa é fundamentalmente ficção.
Uma das coisas que podemos deduzir de A Louca da Casa é algo que está em todos os meus livros: a memória é uma invenção, um conto que nos contamos a nós mesmos e é, além disso, um conto em construção e perpétua transformação, porque aquilo de que me lembro hoje da minha infância, por exemplo, não se compara com aquilo de que me recordava há vinte anos.
A memória surge, neste livro, como uma espátula (mais precisa do que a própria vida) que vai esculpindo a nossa identidade (ou a nossa perceção sobre a mesma). Dependemos da imaginação que a nossa memória tiver?
Uma das coisas que podemos deduzir de A Louca da Casa é algo que está em todos os meus livros: a memória é uma invenção, um conto que nos contamos a nós mesmos e é, além disso, um conto em construção e perpétua transformação, porque aquilo de que me lembro hoje da minha infância, por exemplo, não se compara com aquilo de que me recordava há vinte anos. Por vezes, cruzo recordações de coisas vividas com o meu irmão em pequenos (não tenho irmãs, mas sim um irmão) e a verdade é que os pais do meu irmão não são os meus pais. Cada um de nós inventou o seu passado de maneira diferente. E, sim, a memória é uma invenção, assim como o é a identidade, porque é baseada na memória.
«Convém não crescer demasiado». É um aviso que nos deixa a propósito da criança que vamos perdendo com o amadurecimento e o impacto direto dessa perda nas leituras que fazemos vida fora. O romance é uma analogia da infância (no sentido interrogativo e contemplativo)?
Convém não perder a criança que temos dentro de nós, convém que essa criança não morra, na medida em que essa criança é a nossa criatividade, a nossa vitalidade, a nossa curiosidade. E parece-me que todos os romances partem, de algum modo, da infância inacabada do escritor.
O romance pode ser a arte maior? Mais fiel à natureza da vida? Na medida em que, como diz, remete para um território com «a mesma imprecisão e desmesura» patentes na «existência humana»…
Juntamente com a música, são as duas artes essenciais. A música, que está no bater do nosso coração. E a narrativa é o que constrói as nossas vidas. Nós, seres humanos, somos um relato. Diz [Yuval] Noah Harari, no seu famoso ensaio Sapiens, que aquilo que nos transformou em sapiens foi, precisamente, a nossa capacidade de inventar histórias.
O poder é sempre algo manchado e imperfeito, que naturalmente aspira a ser absoluto e eterno. Essa é, aliás, a chave do sistema democrático.
Fala-nos também do sucesso, hoje menos relacionado com a glória do que com a fama, a qual caracteriza como «a versão mais barata, instável e artificial do triunfo». O que leva as “estrelas”, mesmo as literárias, a dependerem tanto dessa superficialidade?
A insegurança e o terrível ruído à volta. Hoje valoriza-se muito mais a fama do que a glória e tudo parece obrigar-nos a perseguir isso. Há que lutar dia após dia contra essa pressão tão destrutiva.
Numa analogia a Adão e Eva, ousa dizer algo simplesmente encantador e soberano: «O que perdemos ao perder o paraíso foi a capacidade de contemplar essa enormidade sem nos destruirmos». Esta poderá ser uma leitura para a falta de liderança na tomada de poder, um pouco por todo o mundo?
Não diretamente. O poder é sempre algo manchado e imperfeito, que naturalmente aspira a ser absoluto e eterno. Essa é, aliás, a chave do sistema democrático. A democracia é um sistema pessimista, que desconfia com toda a razão do poder e tenta dividi-lo, fragmenta-lo e impor-lhe todos os obstáculos e restrições possíveis. Assim, a enormidade à qual me referia era a beleza absoluta do conhecimento total. Nada tem a ver com o poder, em suma. Muito pelo contrário.
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