Sandra Torres
TTinha dobrado os 20 anos de idade e já se dedicava – com o rasgo que só a idade parece trazer – àquilo a que chamam (nem sempre, pacificamente) jornalismo de causas. Integra alguns dos mais reconhecidos projetos e fóruns de inclusão em Portugal. É repórter, redatora e apresentadora do magazine Consigo, um programa emitido pela RTP2 para dar voz à deficiência e promover a inclusão. Sandra Torres tem 33 anos e um olhar atentíssimo, a denunciar uma atitude jornalística firme e inconformada com a injustiça. À cidade a cujos encantos se rendeu para viver, Lisboa, empresta a visão trazida de Leiria, onde também já viveu, e de Coimbra, onde nasceu. É licenciada em Comunicação Social pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa, e pós-graduada em Ciências da Comunicação, pela Universidade Católica Portuguesa. Iniciou a atividade jornalística há mais de dez anos, tendo começado pela imprensa escrita, que trocou em 2006 pela televisão. Integrou mediáticos programas televisivos, como o 5 Para a Meia-Noite, onde diz ter estado ao lado de alguns dos melhores da televisão. É na televisão que se sente confortável, porque também é na televisão que sabe poder sair da zona de conforto, «onde a magia acontece», diz. Nas suas palavras dóceis e avisadas, confirmadas pelo olhar seguro de quem já refletiu, surge realçado um mundo convicto, de esperança e com valores à prova de bala. Para falar mais das semelhanças do que das diferenças, de deficiência, de cidadania, de cultura para todos e do amor ao próximo, Sandra Torres ficou Entre Vistas, numa conversa a fazer lembrar o tempo em que se brincava à vontade na rua. A colecionar histórias de felicidade.
Que memórias conserva da sua infância?
Que memórias é que eu guardo da minha infância?… [pequena pausa] Foi uma infância feliz e intensa, muito cheia de tudo, muito cheia de pessoas. Muito partilhada com a minha irmã, a minha melhor amiga. Faço parte de uma família muito grande e matriarcal, com mulheres de grande peso, no sentido mais positivo da palavra. A minha avó materna tinha uma personalidade muito vincada, era uma mulher muito à frente do seu tempo. Também a minha mãe o era, uma mulher muito segura de si. Para dar uma ideia concreta, tenho 23 primos direitos. Portanto, cresci sempre com a casa muito cheia e os meus pais gostavam que ela assim estivesse: povoada de vidas (mesmo não sendo uma casa muito grande). Isso também determinou, de certa forma, o meu percurso, porque tenho efetivamente essa necessidade de estar rodeada de muita gente e de me cruzar com muitas histórias… Estes aspetos, no seu conjunto, influenciaram a forma como valorizo as pessoas, como olho para a importância que cada um de nós tem. E sempre tive muito presente o direito que cada ser humano deve ter de construir um percurso sólido, sem barreiras, sem preconceitos, sem limitações.
Nas suas brincadeiras, já se vislumbrava uma tendência para o jornalismo?
Acho que sim! Se bem que a jornalista que eu queria ser era a jornalista que vai para a guerra. Mal imaginava eu que me ia transformar numa jornalista pela paz [risos], dado que o percurso que acabei por traçar baseia-se no jornalismo de causas.
O que é, na sua ótica, um «jornalismo pela paz»?
Parece-me que um jornalismo pela paz é aquele que consegue elevar na sociedade os valores que realmente importam, como a solidariedade, a entreajuda, a justiça, o reconhecimento da semelhança e não, atenção, a aceitação da diferença. Este é um tema pelo qual me debato muito: falamos muito do reconhecimento da diferença, do aceitar o outro e, afinal, mais importante ainda é o reconhecimento da semelhança. É muito mais aquilo que nos une do que aquilo que nos separa. Essa barreira ainda não está quebrada e, muitas vezes, é isso que impõe certas limitações quando nos debatemos com a deficiência, a inclusão…
Acho que fui uma pessoa que foi crescendo e amadurecendo no tempo certo. Hoje em dia, assusto-me um pouco com a velocidade a que crescem as novas gerações. É fundamental vivermos cada etapa da nossa vida no tempo certo.
Mas voltando às brincadeiras…
Sim, à infância e ao jornalismo que por ali já se vislumbrava! Eu tinha de facto uma necessidade enorme de dizer o que pensava. Lembro-me de, muitas vezes, a minha mãe se zangar comigo, porque eu ocupava constantemente a linha telefónica e ficava a falar para o “pi, pi, pi”, a descrever o que tinha acontecido naquele dia e o que era preciso fazer… O mesmo acontecia em frente ao espelho. Eu tinha aquela necessidade de, sem ninguém estar a ver – nunca tive qualquer sede de protagonismo –, falar em voz alta, na esperança de dar voz ao mundo.
Carregar nos ombros as dores do mundo…
Mostrar aos outros as dores do mundo que um dia podem ser ou que muitas vezes também são as nossas dores. Mostrar aos outros que os nossos gestos simples podem aliviar o sofrimento. De facto, eu tenho desde sempre esta vontade de dar voz aos outros e de contar histórias. E sempre escrevi muito. Sempre partilhei muito aquilo que sentia através da palavra escrita. Tinha, inclusive, um diário.
Quais eram os seus grandes temas no diário?
Creio que os temas comuns à maioria das pessoas: o amor, as angústias, os sonhos, a vontade de vencer os medos, as qualidades e as características dos meus amigos e da minha família. Tive sempre uma necessidade muito grande de valorizar os pequenos milagres da vida. E sempre dei graças pela família que tenho. Pela minha irmã, que continua a ser a minha grande conselheira, pelo meu pai, que é o melhor ser humano que conheço, pela minha mãe, que sempre foi uma força da natureza. E por todas as pessoas que, dia após dia, mês após mês, ano após ano, entram na minha vida e me acrescentam.
Confesso que, quando surgiu a oportunidade de integrar um projeto em televisão, fiquei um pouco reticente, porque eu gostava mesmo era de escrever e não queria que as palavras deixassem de ser a minha matéria-prima. Depressa percebi que a televisão é tanto imagem como palavra, portanto o desafio era ainda maior e mais estimulante.
Descreva-me a Sandra que entretanto cresceu…
Posso dizer que era uma pessoa muito tímida e introvertida, ao contrário daquilo que sou hoje. Há um período da minha vida em que estou muito metida comigo mesma, em que pensava muito na pessoa que era e que poderia vir a ser, na imagem que os outros tinham de mim e na vontade que sempre tive de ter um impacto positivo na vida dos outros. Mas sempre fui uma pessoa muito equilibrada emocionalmente, e isso devo aos meus pais. A inteligência emocional é um ponto fundamental na educação de qualquer pessoa. Pode faltar-nos muita coisa, mas se tivermos esse equilíbrio emocional, se sentirmos paz interior, tudo o resto se torna mais leve, tudo na vida faz mais sentido. Acho que fui uma pessoa que foi crescendo e amadurecendo no tempo certo. Hoje em dia, assusto-me um pouco com a velocidade a que crescem as novas gerações. É fundamental vivermos cada etapa da nossa vida no tempo certo.
Como era a Sandra Torres, estudante universitária?
A Sandra universitária foi-se descobrindo… Fiquei muito feliz quando entrei para o ensino superior e percebi que tinha conseguido levar para a frente esta ideia de ser jornalista, apesar de ter noção das dificuldades que poderia vir a enfrentar no mercado de trabalho. Mas fiquei muito feliz, porque esta era a área que eu queria. A minha segunda opção era o Direito, uma área com muito peso na minha família, mas ainda bem que me licenciei em Comunicação Social e que estou a ter a oportunidade de exercer jornalismo. É uma paixão antiga e para toda a vida.
Ainda no período pré-Bolonha, deu continuidade à formação académica e fez uma pós-graduação em Ciências da Comunicação, na Universidade Católica Portuguesa. Como é que este grau académico enriqueceu a sua formação?
Ainda antes disso, gostava de referir que no último ano do meu curso de licenciatura em Comunicação Social [Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade Técnica de Lisboa], graças a um protocolo celebrado entre a Universidade e o Cenjor [Centro Protocolar de Formação para Jornalistas], tive formação prática em jornalismo. Desenvolvemos competências em áreas como edição de conteúdos, reportagem, diretos. Uma experiência complementar muito enriquecedora. Avancei depois da licenciatura para uma pós-graduação por sentir que precisava de dar continuidade aos estudos, ir para outra Universidade, integrar outro grupo de pessoas, continuar a aprender com novos docentes. Tudo isso nos acrescenta valor. Cadeiras como a Ética e Deontologia, a Comunicação Organizacional, permitiram-me alargar horizontes e aprofundar novas áreas do saber. Para além disso, esta formação viabilizou o meu contacto também com a vertente organizacional, desencadeando ali quase uma espécie de plano B para o meu futuro profissional. Foi uma boa experiência. Conheci pessoas com percursos já muito sólidos, outras a começarem, como eu. Foi interessantíssimo, para mais numa universidade, como a Católica, que tem uma filosofia muito própria e um cuidado muito direcionado com os alunos que acolhe.
Prefiro manter-me ligada às pessoas. Por isso, se as “minhas” pessoas forem para o outro lado do mundo, o outro lado do mundo pode passar a ser a minha terra. Sinto que pertenço a muitos locais, tenho a sorte de já ter viajado imenso.
Em Portugal, já viveu em três cidades: Lisboa, Leiria e Coimbra (da atual para a mais antiga). Como é que descreve as diferentes experiências? Que visão de Portugal ganhou em cada uma delas?
Sim, podemos dizer que são três. Eu fui apenas nascer a Coimbra (o médico da minha mãe estava lá e ela fez questão que fosse ele a acompanhar o parto), mas não retiro a cidade dos amores e dos doutores (como é popularmente conhecida) deste “apanhado”. As nossas raízes são sempre as nossas raízes. É como alguém que nasce em África e, mesmo que não volte a pisar solo africano, fica para sempre com alma africana e com uma ligação profunda àquela terra de cheiros e de cores. Portanto, não posso negar que tenho uma ligação emocional à cidade onde nasci. Mas, devo confessar, que preciso fazer as pazes com Coimbra. Foi lá que nasci em 1982 e foi lá que a minha mãe morreu em 2012. É uma cidade que me é difícil de amar e de odiar. Depois, Leiria, onde vivi até vir para a universidade, no ano 2000. Leiria é a cidade onde cresci, onde ainda tenho muitos amigos, onde tenho o meu ninho, porque a casa dos meus pais continua a ser lá. Continua a ser uma cidade de felizes reencontros e de muitas memórias.
É a sua terra?
Sim, é a minha terra. Se bem que eu não gosto muito de me manter ligada a sítios. Prefiro manter-me ligada às pessoas. Por isso, se as “minhas” pessoas forem para o outro lado do mundo, o outro lado do mundo pode passar a ser a minha terra. Sinto que pertenço a muitos locais, tenho a sorte de já ter viajado imenso. Mas, de facto, Leiria é a cidade onde eu cresci e onde tenho familiares e amigos. E, curiosamente, é agora uma cidade onde vou muitas vezes em trabalho, porque ali estou ligada a projetos sociais que me dizem muito. Sou madrinha da APPDA – Associação Portuguesa para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo e, anualmente, tenho o privilégio de apresentar a Gala da Inclusão, no Teatro José Lúcio da Silva, uma iniciativa ímpar no país, que distingue boas práticas na área da inclusão. Lisboa… Lisboa é… [pausa, com olhar brilhante e pensativo] Lisboa é a cidade que me conquistou. Quando vim para Lisboa, não estranhei a mudança, não tive quaisquer problemas de adaptação. É uma cidade que eu gosto cada vez mais, onde há sempre algo novo para descobrir. É um cliché, mas é mesmo assim: Lisboa tem uma luz única, que nos ilumina.
Em Lisboa, há um dia que surge a televisão, onde tem vindo a amadurecer como profissional de comunicação…
Confesso que, quando surgiu a oportunidade de integrar um projeto em televisão, fiquei um pouco reticente, porque eu gostava mesmo era de escrever e não queria que as palavras deixassem de ser a minha matéria-prima. Depressa percebi que a televisão é tanto imagem como palavra, portanto o desafio era ainda maior e mais estimulante. Integrei inicialmente a equipa do Consigo, um programa que resulta de uma parceria entre a RTP e o Instituto Nacional para a Reabilitação e, pouco tempo depois, abracei mais um projeto: o 5 Para a Meia-Noite. Na altura os dois programas eram feitos pela mesma produtora, a Videomedia, e por isso foi possível acumular trabalho.
O 5 Para a Meia-Noite é de facto a prova de que, num país tradicionalmente conservador, há margem para fazer humor, desde que isso seja feito com peso, medida e consciência.
No caso específico do 5 Para a Meia-Noite, explique-me que requisitos são necessários para trabalhar o humor num país tradicionalmente sisudo?
Acho que essa pergunta teria de ser colocada aos apresentadores e aos guionistas. No 5 Para a Meia-Noite, eu pertencia à equipa de conteúdos. Fazia trabalho de pesquisa, o primeiro contacto com os convidados e a recolha de todo o material necessário para documentar devidamente os apresentadores. O 5 [Para a Meia-Noite] foi assumido desde o início como um programa de humor, mas com o espaço devido para conversas sérias. Penso que um dos segredos para este programa se manter ainda hoje no ar é a liberdade que foi concedida aos apresentadores de darem o seu cunho a um talk-show que fez história na televisão portuguesa. O 5 Para a Meia-Noite é de facto a prova de que, num país tradicionalmente conservador, há margem para fazer humor, desde que isso seja feito com peso, medida e consciência.
A si, que se mantém desde então em televisão, que legado é que este programa lhe deu?
O 5 Para a Meia-Noite foi uma experiência muito enriquecedora, desde logo pela oportunidade de trabalhar com cinco apresentadores completamente diferentes, muito arrojados, com uma cultura geral incrível, muito novos, mas muito conscientes da responsabilidade que se tem ao fazer televisão. São pessoas com quem aprendi imenso. Depois, pude testemunhar uma aposta ganha da direção da RTP num formato que se tornou num programa de culto, com uma legião de fãs e que passou da RTP 2 para a RTP 1, que cresceu a cada dia, ou melhor, a cada noite. Por fim, a oportunidade de conhecer pessoalmente todos os convidados, profissionais de diversas áreas, uns mais mediáticos do que outros, mas todos interessantíssimos.
Aquilo que o Consigo procura fazer é, de facto, mostrar que este tema é muito mais do que aquilo que cabe na palavra diferença ou deficiência. Aliás, se retirarmos o “d” à palavra deficiência, aparece-nos uma outra, eficiência [sorriso].
Durante um período de tempo, acumulou com esse um outro programa, completamente diferente, o Consigo, ao qual está ainda hoje ligada…
O Consigo teve sempre uma continuidade. Desde o seu início, e apesar de algumas interrupções, tem vindo a ser renovado ano após ano. É um programa que está no ar há mais de 10 anos! Na minha vida, surgiu de forma inesperada e com um tema também ele inesperado. No formato, não foge ao que é um magazine semanal, com reportagens e com um registo informativo. O desafio está na forma como tratamos o tema, que nem sempre é fácil de abordar.
Os atletas portugueses mais medalhados são os paralímpicos, há um arquiteto português cego que é premiado internacionalmente, há atualmente uma aposta forte em Portugal no turismo para todos, há teatros que incluem na sua agenda cultural sessões com Língua Gestual Portuguesa. Poderia dar muitos mais exemplos, mas creio que estes chegam para questionarmos o nosso conceito de “normalidade”.
Um dos objetivos a que se propõe o Consigo é mudar «mentalidades e mostrar o que de bom se vai fazendo pela inclusão dos cidadãos com necessidades especiais». Que requisitos são necessários, ao nível do jornalismo, para assumir esta abordagem?
Aquilo que o Consigo procura fazer é, de facto, mostrar que este tema é muito mais do que aquilo que cabe na palavra diferença ou deficiência. Aliás, se retirarmos o “d” à palavra deficiência, aparece-nos uma outra, eficiência [sorriso]. E posso dizer que tenho conhecido pessoas muito eficientes na forma como encaram a vida, como se posicionam numa sociedade da qual nem sempre se sentem parte integrante. E posso também dizer que tenho a sorte de integrar, no Consigo, uma equipa muito eficiente que se propõe abordar o outro lado da deficiência e mostrar histórias e projetos extraordinários. Sem nunca esquecer que temos também de alertar para realidades mais duras, às quais muitos desviam o olhar. Como o dilema dos pais que têm filhos com deficiência e que receiam que, quando morrerem, os seus filhos não tenham quem cuide deles. Como a existência de escolas que ainda fecham as portas à diferença. Como a dificuldade que as pessoas com deficiência têm no acesso ao mercado de trabalho, porque o preconceito existe. Um preconceito que advém muitas vezes do desconhecimento. E a nossa função, a missão do Consigo é essa: quebrar esse desconhecimento, informando e mostrando que são as minorias que fazem avançar o mundo. Os atletas portugueses mais medalhados são os paralímpicos, há um arquiteto português cego que é premiado internacionalmente, há atualmente uma aposta forte em Portugal no turismo para todos, há teatros que incluem na sua agenda cultural sessões com Língua Gestual Portuguesa. Poderia dar muitos mais exemplos, mas creio que estes chegam para questionarmos o nosso conceito de “normalidade”.
É de jornalismo de causas que falamos? Como interpreta essa expressão (nem sempre vista com bons olhos)?
Se há uma coisa que o Consigo me ensinou foi ir sempre além das palavras e do seu significado. Portanto, podemos até arranjar um outro nome para isto que é o jornalismo que procura dar voz a quem muitas vezes não a tem, que procura dosear objetividade e sensibilidade, que desperta consciências…
A Sandra define-se, na sua atividade profissional, precisamente, como alguém que gosta de dosear objetividade e sensibilidade…
Precisamente. Quando vou fazer uma entrevista tenho noção de que tenho em mãos a responsabilidade de conseguir contar o melhor que posso a história daquela pessoa. Mesmo que o meu rosto não revele, emocionou-me muito, mesmo que a minha voz não trema, por dentro estou solidária com a luta de quem escuto e há vezes em que também me apetece gritar para despertar consciências. Voltando uma vez mais aos atletas paralímpicos… Eles queixam-se legitimamente da falta de visibilidade que os meios de comunicação lhes dão. No Consigo, eles têm o espaço merecido. Atenção, quando digo “eles”, digo os atletas, os desportistas que, muitas vezes sem apoios, não desistem do seu sonho e pintam a ouro a História do desporto português. A deficiência é apenas uma característica, que não os define, que não os resume. Portanto, aquilo que fazemos no Consigo é, à semelhança de outras reportagens, de outros programas, contar a história de pessoas, dar a conhecer projetos que se distinguem, neste caso na área da inclusão.
Há pessoas que fazem coleção de um sem número de coisas, eu faço coleção de histórias e, muitas vezes, tenho necessidade de voltar a essas histórias e ao contacto com os seus protagonistas.
É de comunicação para todos, de integração e de inclusão que o Consigo fala. Os casos abordados são de sucesso. Quer falar-me de algum que a tenha marcado?
São muitos e eu faço questão de os escrever, primeiro em formato de peça jornalística, depois com mais detalhe em texto solto. Estão todos guardados na minha “gaveta de papéis”. Há pessoas que fazem coleção de um sem número de coisas, eu faço coleção de histórias e, muitas vezes, tenho necessidade de voltar a essas histórias e ao contacto com os seus protagonistas. Perde-se a objetividade aqui? Não! Reforça-se a sensibilidade. Dessa minha coleção fazem parte muitas e muitas histórias, das quais posso eleger várias… A Mafalda Ribeiro, jornalista e escritora, que nasceu com a doença dos “ossos de vidro”, é das pessoas mais seguras que conheço. Gosto de a definir como uma “arquiteta de vidas”, porque dá alicerces emocionais a quem com ela se cruza. O José Luís Peixoto, escritor, que a dada altura do seu percurso decidiu editar um livro em Braille, para que a sua obra fosse lida, com a ponta dos dedos, por quem não vê. O Diogo Lopes, estudante no Conservatório de Música, um pianista arrebatador, um jovem que com apenas 15 anos fundou a Associação Portuguesa de Charcot Marie-Tooth para alertar para esta doença neuromuscular grave, com a qual vive diariamente. O Bernardo Pinto Coelho, que é aliás o primeiro protagonista desta nova série do Consigo, que estreia dia 20 de fevereiro, na RTP2, e que tem esclerose lateral amiotrófica (ELA). A doença foi-lhe diagnosticada há seis anos e o Bernardo veio baralhar as estatísticas, que dizem que a maior parte dos doentes com esta patologia não vive mais do que três a cinco anos depois do diagnóstico. O Bernardo é a personificação da palavra resiliência. Ele faz quatro a seis horas de exercício físico por dia, mudou completamente os hábitos de alimentação e a verdade é que conseguiu que a doença começasse a regredir. Ele fala em cura, por isso eu repito a palavra: cura! Falta-lhe a força muscular, mas ele não se rende à ELA. É, de facto, um caso de superação. É ir além dos próprios limites. É a cabeça a avançar quando o corpo recua. O seu caso é falado em todo o mundo! O Bernardo prometeu a si próprio voltar a correr na praia do Guincho e há uma coisa que recordo vivamente da entrevista que lhe fiz, um momento em que ele me pergunta: «Sandra, qual é o melhor dia para eu voltar a correr no Guincho? Qual o melhor dia para a agenda das pessoas? Para conseguir ter lá a Sandra e outros jornalistas que me possam acompanhar nesta corrida?» Perguntou-me, concretamente, se o domingo seria um bom dia. Eu disse-lhe que sim, até porque, quer eu, quer todas as outras pessoas que tiveram já a oportunidade de o entrevistar, pararemos o relógio no dia em que ele estiver a correr no Guincho. Este, como tantos outros, é seguramente um testemunho que me marca e que me acompanhará sempre.
Da sua experiência, que motivações lhe parece estarem na base de pessoas, como o Bernardo Pinto Coelho, a quem a medicina lhes deu um diagnóstico fatal ao qual quiseram fazer frente?
Há um elemento transversal a estas pessoas, digamos, vencedoras. É que a maioria descobre em si uma força incomensurável para encarar o problema. Falemos de uma pessoa que ficou cega ou de alguém que por acidente ficou paraplégico e ganhou uma doença para a vida… O que estas pessoas me dizem é que há uma força em nós que se mantém adormecida e que há um momento na nossa vida em que essa força se manifesta. É claro que há depois um conjunto de fatores determinantes, a juntar à resiliência, como a personalidade da pessoa, o meio em que vive, os meios a que tem acesso, o apoio familiar, as bases emocionais…
O João Lobo Antunes dizia outro dia numa entrevista que os seus doentes – a quem ele tinha dado uma sentença de morte – pediam-lhe, muitas vezes, mais três meses para chegarem ao Natal ou para casarem uma filha… São metas que as pessoas se impõem para, na impossibilidade de superar uma doença, ganharem pelo menos mais tempo de vida…
O fundamental – e isto vale para casos limite ou até para as coisas mais elementares da nossa vida – é que tudo seja vivido no tempo certo. Se estamos vivos, temos de nos manter firmes e viver. O luto não (deve) pode ser feito em vida. Claro que não é fácil as pessoas não se entregarem quando lhes é comunicado um diagnóstico de morte, mas é possível. Quando nos vemos na linha que separa este lado do outro, não nos podemos render, temos de nos manter no lugar que ainda nos pertence. Posso dar um exemplo da minha vida pessoal. Há três anos, um médico disse-me, cara a cara, que a minha mãe estava com um cancro de alto grau, que pouco havia a fazer. Recebi essa notícia numa semana que tinha tudo para ser uma semana normal. Numa semana em que a minha mãe me tinha ligado duas vezes por dia como habitualmente, em que planeávamos mais um fim-de-semana em família, em que o calor de julho se fazia sentir, antecipando as desejadas férias. Uma forte dor de cabeça, tonturas e alguma desorientação levaram a minha mãe ao médico e a fazer alguns exames e de um instante para o outro… o chão fugiu-me dos pés. De repente, eu deparei-me com o limite entre a vida e a morte, entre o ter a minha mãe agora e deixar de a ter amanhã. Lembro-me bem que a única coisa que eu disse ao médico foi: «Faça a sua parte, que eu vou fazer a minha». Ora, a minha parte era mantê-la viva, era agarrar-me à vida e agarrá-la à vida enquanto ela cá estivesse. Portanto, temos de ter uma noção muito clara da importância do aqui e do agora. Agora que estamos vivos, há que viver aqui. A morte que espere. Daí eu ter dito no início da entrevista que é tão importante aprendermos a viver as coisas no tempo certo. A angústia e a ansiedade de antecipar desesperadamente as coisas só nos prejudica. Mais uma vez reforço que aquilo que aprendo com as pessoas que entrevisto é a importância do presente. Por mais sonhos que tenhamos, por mais projetos que abracemos, se agora não fizer sentido, tudo o resto não virá. É isso que distingue essas pessoas: a determinação de viver e de vencer no presente, sem grande apego ao passado e sem grande ansiedade perante o futuro.
Um outro entrevistado, que ficou cego, revelou-me na entrevista: «Eu tinha, todas as noites, o hábito de contar as estrelas. Agora não posso. Mas imagino-as. E, agora, todas as noites há estrelas no meu céu.» Nessa noite, fui olhar para o céu e contei as estrelas.
Para as pessoas com deficiência, nós podemos ser de certa forma modelos para quem olham com admiração e contemplação. Mas também me parece que as pessoas ditas “normais” saiam do contacto com aquelas mais enriquecidas e munidas de boas lições. É assim?
Sim, sem dúvida. Cada história é uma história, cada pessoa é uma pessoa. Mas, no fundo, todos temos muito em comum. Ilustro com uma pequena história aquilo que me parece mais curioso neste ponto. Uma vez um rapaz que entrevistei disse-me: «Sandra, eu contei-lhe tudo isto, mas não fique a pensar que eu sou um herói. Eu, aliás, não quero ser de todo um herói. Quero ser uma pessoa igual às outras, mas que se desloca em cadeira de rodas. Se me apetecer ir ao cinema, quero ir sem a ajuda de ninguém, se estiver um dia quente de sol, quero conseguir chegar até ao mar, para sentir a brisa. As coisas mais simples são também as que me fazem feliz. E se me apetecer resmungar porque o tempo está de chuva, também quero ter esse direito!». São histórias como esta que nos fazem relativizar e olhar para a vida com outros olhos. Com estas pessoas, aprendemos a valorizar o que realmente importa. E o que importa é o essencial. A partir do momento em que nos apercebemos disto, parece que cada ganho, cada conquista, tem um sabor extraordinário. Um outro entrevistado, que ficou cego, revelou-me na entrevista: «Eu tinha, todas as noites, o hábito de contar as estrelas. Agora não posso. Mas imagino-as. E, agora, todas as noites há estrelas no meu céu.» Nessa noite, fui olhar para o céu e contei as estrelas. As estrelas que estiveram sempre lá e das quais raramente me lembro. Portanto, o que aprendemos com estas pessoas são coisas tão simples, mas tão intensas…
É muitas vezes convidada para moderar debates, apresentar livros ou integrar outros fóruns onde a comunicação inclusiva é o tema central. A opinião pública e a esfera cívica estão solidárias com este tema? Ou esse é o caminho das pedras?
A opinião pública está cada vez mais solidária com este tema e diz-se, repetidamente, que há um grande preconceito em relação à deficiência. Eu não concordo na totalidade. Como já referi, acho que há um enorme desconhecimento. E tudo o que nos é desconhecido, assusta-nos. Tudo o que está fora da nossa zona de conforto, cria-nos alguma ansiedade. Mas a verdade também é – e isso não sou só eu que o digo, mas sim a maior parte das pessoas – que é quando saímos da nossa zona de conforto que a magia acontece. Parece-me que há, de facto, uma grande sensibilidade na sociedade face a todos estes temas, mas há ainda falta de conhecimento profundo nesta área. Um desconhecimento sobre as coisas de que estas pessoas são capazes. Um desconhecimento sobre o quão normal a vida destas pessoas é ou pode ser. No dia em que não for necessário o Consigo existir, então aí o nosso papel estará cumprido. Mas há ainda muito caminho para percorrer, algumas pedras para apanhar… Há já muitas barreiras físicas vencidas e ultrapassadas, há já até uma enorme sensibilidade para esse aspeto em concreto. Faltam as barreiras psicológicas. Falta de facto a barreira intelectual que muitas vezes não nos deixa olhar de frente para a pessoa que é diferente de nós. Por isso perduram intocáveis questões tão sensíveis e, simultaneamente, tão naturais, como a afetividade e a sexualidade na deficiência. Não esqueçamos que, com diferentes ritmos, em todos os peitos bate um coração. Quando essa barreira do desconhecimento e do receio da diferença estiver ultrapassada, aí entraremos certamente noutro patamar.
Cada um de nós é um agente de mudança. E enquanto cidadãos e/ou trabalhadores, devemos fazer da mudança o nosso lugar de permanência.
Atualmente, temos à frente da Secretaria de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência uma governante cega, com larga experiência profissional na área, nomeadamente como presidente da ACAPO (Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal). É uma oportunidade única para a mudança de mentalidades?
Este é um passo muitíssimo importante nesta caminhada que temos vindo a fazer no sentido da construção de uma sociedade mais aberta e atenta ao outro. E é um passo que está a ser dado de forma muito segura. Eu olho para a Dra. Ana Sofia Antunes e o seu rosto é um rosto de esperança. É uma pessoa com uma formação interessantíssima, licenciou-se em Direito, presidiu à ACAPO, tem tido sempre uma voz ativa apelando para a igualdade e para a importância de fortalecer o Estado Social. Acho que ela tem uma visão muito clara e consciente de que pode não mudar tudo, mas vai desencadear nos outros a vontade de mudança. Estou muito confiante nesta nova Secretaria de Estado. A Dra. Ana Sofia Antunes tem em mãos uma missão complexa, mas abrirá certamente novos caminhos (como aliás já abriu, tornando-se a primeira governante cega em Portugal).
No setor privado, são várias as fundações com estratégia definida e obra feita em matéria de inclusão, com maior ou menor expressão nas vertentes mais urgentes: saúde, educação e acessibilidade. Que olhar lhe merecem as iniciativas privadas? Destaca algum caso em particular?
Esta é uma área tão carente de envolvimento e de entrega que todas elas – por maior ou menor que seja o seu contributo – são preciosas. Há de facto um empenho cada vez maior das empresas e entidades privadas, que podem dar um contributo decisivo em áreas como a educação, a tecnologia, a saúde… Tenho testemunhado o trabalho de diferentes fundações em Portugal e é curioso o envolvimento dos próprios colaboradores, que ganham motivação extra quando sentem que o seu trabalho chega a mais pessoas e que faz efetivamente a diferença. A responsabilidade social é precisamente a postura que as empresas adotam, voluntariamente, para promover o bem-estar de todos: públicos interno e externo. E este é um conceito cada vez mais sólido em Portugal. Cada um de nós é um agente de mudança. E enquanto cidadãos e/ou trabalhadores, devemos fazer da mudança o nosso lugar de permanência.
Que projetos implementaria no nosso país em matéria de inclusão?
Há uma área que eu gostava de ver crescer ainda mais: a da cultura. Têm sido dados passos muito interessantes, por exemplo, ao nível da realização de concertos e peças de teatro com intérprete de Língua Gestual, com audiodescrição, mas a caminhada ainda é longa. É fabuloso assistir a uma peça de teatro ou a um concerto com tradução em Língua Gestual Portuguesa. É tão bonito ver as palavras traduzidas em gestos… E perceber a quantidade de pessoas que esse gesto simples inclui… Na literatura, é fundamental que mais editoras apostem nos formatos inclusivos. A área cultural é tão rica, tão fascinante, tão enriquecedora, que é de facto urgente chegar a todos.
Identifica algum país modelo na área de inclusão? Quais são as boas práticas?
Cada país, com as suas próprias características e culturas, destaca-se de formas diferentes nesta área. No Consigo, temos feito algumas reportagens focando o empenho dos diferentes países na construção de uma sociedade para todos. Há países onde está praticamente tudo feito de raiz, outros em que é preciso investir. E atenção que o investimento nas acessibilidades beneficia todos os cidadãos. Aquilo que noto é que em países como a Alemanha, a Áustria, não se coloca a hipótese de um espaço não ter uma rampa para uma mãe andar com um carrinho de bebé ou para alguém em cadeira de rodas circular sem obstáculos. As leis existem e são cumpridas. É tudo muito mais integrado na cultura intrínseca do país e isso às vezes falta em Portugal. Temos de trabalhar a educação para a cidadania.
Há uma cidadania por explorar? Há pouca consciência dos direitos e deveres?
Há, sim. Por um lado, pelo desconhecimento de que falávamos. Por outro lado, pela desresponsabilização que as pessoas assumem. Nós, em Portugal, temos ótimas leis, mas há que cumpri-las, caso contrário de nada nos servem. Há que sensibilizar e responsabilizar cada cidadão para o papel que pode e deve desempenhar na sociedade.
Eu prefiro viver um presente “abensonhado”, do que um futuro sonhado [sorriso].
Há pouco referiu que, ao contrário de muitos que colecionam objetos, a Sandra coleciona histórias. O que vai fazer com elas?
Eu tenho um projeto literário – porque as palavras são a minha matéria-prima – que consiste em dar uma dimensão maior a estas histórias que coleciono. Tenho muita vontade de eternizá-las em papel. Muitas delas tiveram de ser resumidas a 4/5 minutos de reportagem e não é justo que assim fiquem, nem para quem as contou, nem para quem as deu a conhecer. Portanto, tenho uma enorme vontade de compilar num livro estas histórias. É um projeto ao qual já dei início, mas está por enquanto em stand by. Escrever um livro acarreta uma grande responsabilidade e quero fazê-lo no tempo certo. Espero que em breve este projeto ganhe forma, para que as histórias que coleciono possam vir a ser lidas e escutadas por muitas pessoas.
Quais são os seus sonhos?
Eu prefiro viver um presente “abensonhado”, do que um futuro sonhado [sorriso]. Portanto, aquilo que eu quero neste momento, para já, é conseguir que o Consigo continue a ter espaço na televisão portuguesa e que estas histórias possam, apesar do seu restrito tempo de antena, condensar o tanto que estas pessoas dão à sociedade. Quero contribuir para dar novo significado a palavras como deficiência e diferença. Quero muito, também, avançar com o projeto literário do qual falámos anteriormente. Esse é mesmo um sonho. E acho que o devo a estas pessoas que partilharam comigo as suas vidas. São histórias de vida, mas também histórias devidas. E depois, claro, tenho os meus sonhos/projetos mais pessoais. Quero muito que a minha filha tenha uma vida incrível, povoada de muitas pessoas, de muitas histórias. E quero que seja uma cidadã atenta, que tenha o máximo de respeito pelo outro, que veja na diferença a riqueza da diversidade. O meu mundo, que é também o dela, é um mundo de reconhecimento da semelhança, da entreajuda, da solidariedade, de abraços por abraços, de beijos por beijos.
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