O nosso lugar de todos os dias ganha uma dimensão incomensuravelmente diferente sempre que dele nos distanciamos e seguimos viagem. Porque não há viagem sem mudança. Assim como não há mudança sem história. E esta é a história de uma mudança desencadeada por uma viagem que, como todas as viagens, redimensiona o nosso lugar habitual. Uma viagem a São Miguel, a ilha maior, entre as nove do Arquipélago dos Açores. De uma beleza avassaladora. Sem caber nos nossos olhos.
No fim de uma estada de uma semana, já com a experiência bem digerida, a beleza absolutamente esmagadora de São Miguel soou maior. Chegada a última noite, pela qual não ansiávamos nem por nada, estreámo-nos em mais uma localidade que nos acolheu antes do regresso ao aeroporto João Paulo II. Vila Franca do Campo. A primeira capital de São Miguel e, até 1499, primeiro e único concelho micaelense. No hotel em que pernoitámos, dizia-nos orgulhosamente o senhor da receção: «Vila Franca do Campo foi a primeira, a primeiríssima, localidade do país – do país inteiro – com eletricidade». Acompanhei, com os meus olhos afirmativos, o orgulho timbrado em todas as suas palavras no seu pronunciar açoriano. Reza, até, a história de que no século XV já bastante avançado, não existia ainda a Santa Casa da Misericórdia em Lisboa (fundada em 1498), mas Vila Franca do Campo oferecia já entre os seus serviços um hospital. Ao longo dos anos, afirmou-se por assegurar uma das maiores produções de leite de São Miguel e um turismo em claro crescimento pôs a competir com uma economia de base rural uma economia cada vez mais vocacionada para os serviços. Não tendo havido tempo para muito mais, sobressaíram na nossa passagem por Vila Franca do Campo uma fugidia entrada nas Queijadas da Vila do Morgado, um ícone da doçaria portuguesa com a fábrica integrada e vista direta para umas simpáticas senhoras polvilhando de açúcar dezenas de queijadas saídas do forno. De um passeio de carro para reconhecimento local, ergueram-se em destaque a Nossa Senhora da Paz e num outro ponto o ilhéu de Vila Franca do Campo, Reserva Natural (e qualquer coisa do outro mundo).
No dia anterior, desforrámo-nos dos passeios em terra e lançámo-nos em alto mar, numa daquelas travessias turísticas pelo Oceano Atlântico, na esperança de ver baleias, golfinhos, orcas e afins. Escolhemos a Futurismo, uma das marcas residentes em plena marina de Ponta Delgada para Whale Watching. Baleias, nem vê-las! Já os golfinhos… Estiveram dezenas e dezenas de golfinhos sob os nossos olhos a bordo de um catamaran com uma simpática tripulação de múltiplas nacionalidades. Durante três horas, deixámos Ponta Delgada nas nossas costas e avançámos em trajetória firme num oceano tranquilíssimo, generoso, de um azul límpido, transparente, resplandecente. Salvo na Indonésia e em Timor-Leste, não me lembro de ter visto nada assim. Em diferentes momentos, o barco parava completamente e um guia debitava palavras treinadas que adaptava ao comportamento dos golfinhos. Vários grupos de golfinhos desfilaram numa coreografia autêntica e numa interação espirituosa com os passageiros. Dali, cabia nos nossos olhos um ângulo diferente sobre a capital de São Miguel. A cidade plantada à beira do mar e em cujo porto expõe as bonitas Portas do Mar e o Pavilhão do Mar, com umas escadarias erguidas em jeito de anfiteatro ao ar livre, surgia a partir do próprio mar mais elegante e majestosa.
Em Ponta Delgada, tínhamos já contemplado as Portas da Cidade, edificadas num outro local em 1783 e transferidas em 1952 para o atual lugar, na Praça de Gonçalo Velho Cabral, introduzindo o caminho para a Igreja Matriz de São Sebastião e para o famigerado Café Central. Na cidade principal de São Miguel, também não perdemos o Mercado da Graça e o seu Rei dos Queijos e dos Ananases. Ali imperam as cores e os cheiros das mesmas frutas e dos mesmos legumes que vemos por cá, claro, mas que ali beneficiam de uma agricultura sólida e libertadora de processamentos alimentares incessantes. Passámos pelo Centro Municipal de Cultura e o Teatro Micaelense. Num outro ícone, que todos os anos atrai centenas de visitantes a Ponta Delgada, o Senhor Santo Cristo dos Milagres, no Convento de Nossa Senhora da Esperança, onde se venera uma peça de arte sacra representando Ecce Homo, Jesus Cristo flagelado apresentado à multidão. No rosto, entalhado em madeira, estão realçados dois estados de alma simultâneos: a violência embutida na pele e uma serenidade indescritível. Interpelei uma senhora da terra, embora emigrada, como se explica uma devoção tão grande. Respondeu-me, envolvida numa fé maior do que ela, que todos os anos vem do Canadá à festa do Senhor Santo Cristo dos Milagres, que segue a par e passo, sem pestanejar. Fiquei comovida com tamanha entrega da Isabel (acabei por ficar a saber o seu nome), que me olhou com olhos salientes de contentamento por saber-se perto de alguém que, do nada, se interessou por si e pela sua fé.
Dedicámo-nos, num outro dia, a algumas das lagoas mais populares e imperdíveis de São Miguel. Pelo meio, sou intercetada por uma senhora de uma simpatia maior: «Olá! Lembra-se de mim? Viemos no mesmo avião para Ponta Delgada». Respondi-lhe convictamente que sim e desejei-lhe boa estada. Aquela interceção materializou de repente a proximidade típica das ilhas e que nos resgatam ao anonimato de onde vimos na nossa vida urbana, corrida. Seguíamos para a primeira das várias lagoas que contemplámos, atónitos: Lagoa do Carvão (infelizmente, muito seca), Lagoa das Empadadas (que implicou um largo passeio a pé até à própria lagoa), Lagoa do Canário (linda, cheia de luz) e, naturalmente, Lagoa das Sete Cidades (com certeza, dos lugares mais bonitos à superfície terrestre), em cuja freguesia nos perdemos durante largas horas. De uma história de encantar, que impediu uma princesa de olhos azuis e um pastor de olhos verdes (ou vice-versa) de casar, surgem duas lagoas brutais em tamanho e brilho, separadas por um caminho estreito de terra a autonomizar cada uma das cores. Para o almoço, fomos com uma enorme hospitalidade recebidos n’O Poejo, uma casa de chá com alojamento local que nos faz sentir em família e em casa. No mesmo dia, pelo meio, tornámo-nos mínimos no topo de alguns dos miradouros essenciais: Miradouro Vista do Rei e Miradouro Escalvado. Terminámos na Fábrica de Chá Gorreana, a mais antiga, e hoje a única, plantação de chá da Europa e internacionalmente reconhecida pela produção de chá de primeira classe.
No dia de Portugal, e em sede tão portuguesa, contornámos a Central Geotérmica da Ribeira Grande, que nos proporciona uma evidência do enorme potencial de energias oferecidas pelo planeta e que nos Açores registam uma referência maior. De novo um miradouro, o da Bela Vista. E de novo uma lagoa: a inconfundível Lagoa do Fogo. Sem intervenção humana, esta lagoa transporta-nos para uma esmagadora perfeição da natureza. Digerindo, seguimos para o Parque Terra Nostra, no Vale das Furnas, que confirma mais um lugar idílico em São Miguel. Com piscinas termais, espécies raras e tons múltiplos de verde a perder de vista, ficamos orgulhosos perante todos os turistas. Aqui está também localizado o magnífico Terra Nostra Garden Hotel, com várias distinções internacionais e validando a boa saúde do mais importante grupo privado açoriano, o Grupo Bensaude. Por lá cruzámo-nos, inesperadamente, em mais uma vivência da proximidade micaelense, com uma amiga que na noite anterior me tinha enviado por mensagem beijinhos de Ponta Delgada, tendo ganho como resposta «Beijinhos a partir também de Ponta Delgada. É obrigatório tomarmos um café». Não sabíamos, naturalmente, que nos encontraríamos no dia a seguir, sem nada termos combinado ao certo. Terminámos o dia, todos juntos, no veleiro em que essa amiga e seu marido pernoitavam. Mantivemo-nos na marina, com receio de que os mais pequenos enjoassem. Ganhámos reservas para o passeio no catamaran, que se deu no dia seguinte e que, previsivelmente, gerou enjoos.
Também fomos ao Nordeste e à sua famosa Igreja de São Jorge, passámos na Lomba do Alcaide, onde dedicados cidadãos locais assistiam às festividades, vestidos a rigor, em torno dos amplos tapetes de flores revestindo ruas completas. Pela estrada a sul, seguimos em direção a Vila Franca do Campo, que visitámos no último dia desta viagem. Uma lagoa linda impôs-se a fazer lembrar a Suíça. Pelo meio da semana, fizemos paragem obrigatória naquele que é destino de surf por excelência, a Praia de Santa Bárbara, na Ribeira Grande, e a Praia Populi, onde nos encontrámos com um antigo colega que tão generosamente nos fez chegar um programa com recomendações preciosas para cada um dos dias e que, em presença, nos falou apaixonadamente dos Açores, deixando dicas para um regresso rápido e contrariando Pessoa na sua apologia de que «para viajar basta existir».
A verdade é que ao terceiro minuto da viagem de avião para lá, uma comissária de bordo, muitíssimo aflita, pediu um médico a bordo para fazer face a uma situação de emergência com um passageiro, o que nos pareceu poder ameaçar por instantes a nossa tão ansiada ida para Ponta Delgada. Não ficaria o meu filho mais velho, que adora mapas e viagens, a saber tão cedo que nos Açores contamos menos uma hora no relógio e, descoberta ainda maior, que nos Açores as vacas pastam em sítios tão íngremes (palavra que não diz na perfeição) e não caem. Respondi-lhe que as vacas, nos Açores, não têm vertigens e ele, não contente com a resposta, pediu-me para ir ao Google em busca de mais coisas sobre as vacas dos Açores. E fui, claro.
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