Estou com os olhos numa das estreias de cinema desta semana: Snu, com realização de Patrícia Sequeira, autoria de Cláudia Clemente, consultoria histórica de Helena Matos e o ICA, o MEO, a RTP e a CML a apoiar.
Snu remete-nos para a figura mítica de Francisco Sá Carneiro e alguns dos episódios mais determinantes da sua intervenção política, abordando factos fundamentais da história recente do país e com um toque, com elegância cinematográfica, à fatídica cena de Camarate. Sempre a partir do olhar de Snu.
Snu Abecassis. A dinamarquesa completamente à frente do tempo português, com o nome original – Ebba Merete Seidenfade – trocado pela curta palavra Snu, que parece querer dizer “esperta”, como a sua personagem, no filme, diz a Sá Carneiro no primeiro encontro entre ambos. Inês Castel-Branco e Pedro Almendra fazem as honras da interpretação, numa aproximação extraordinária aos relatos sobre o real.
Snu é filha de uma mulher que, como ela, abre caminho numa editora, a Penguin Books, e de um jornalista. É, ainda, enteada de um magnata da imprensa sueca, Tor Bonnier, detentor da mansão onde Camus vai jantar após receber o Nobel. Ali convivia a nata intelectual de uma Europa respeitadíssima, que Snu conhecia de perto. Snu casou com Vasco Abecassis, português. Juntos, tiveram três filhos. Conhece-o na escola Michael Hall, em Inglaterra. Namoram. Casam na Suécia. Seguem para Nova Iorque, onde o pai de Vasco tinha um escritório, pelo qual o filho passa a ser responsável. Chegam a Portugal no início da década de 60. E, numa das cenas exploradas pelo filme, é já em Lisboa que Snu confronta o marido agarrado ao ecrã de um televisor: «Em vez de estares a ver televisão devias estar a ser visto na televisão». Seria este o ponto que a faria apaixonar-se por um homem que, ainda que vindo da Rua da Picaria, no Porto, e oriundo de uma família conservadora e austera, era um fazedor, estava no centro dos principais movimentos de transformação do país e, genuinamente (assim o sentiu Snu), mais preocupado com as próximas gerações, do que com as eleições seguintes.
Em Portugal, o quinto país em que vivia (depois da Dinamarca, Suécia, Inglaterra e Estados Unidos), com uma visão ampla e íntima do que se passava por essa Europa e esse mundo, Snu fundou as Publicações Dom Quixote, que se propuseram na sua liderança reunir coletâneas dos principais intelectuais do país (com os quais Snu se sentava à mesa), trazer para o contexto editorial interno alguns dos principais nomes do pensamento europeu (com os quais Snu também se sentava à mesa), despentear os costumes de um Estado Novo duradouro, influir na capacidade de pensar e de se pensar de um Portugal ainda pobre, muito pobre em ideias e ideais. Lançou os Cadernos da Dom Quixote, uma espécie de livros da Penguin Books.
No filme, numa das incursões para a publicação de um dos poucos autores, à época, com uma visão para o país, Francisco Sá Carneiro, Snu senta-se com o mesmo à mesa. Leva para o almoço a perceção de que se trataria de um homem arrogante, snobe. Do almoço sai impressionada, encantada, tocada pela inteligência, o rasgo, o charme do homem que poucos dias depos lhe soletrou poesia ao ouvido, com quem passou mais tarde a viver e ao lado de quem perdeu a vida no trágico caso Camarate. No calendário, corria o 4 de dezembro de 1980. Sá Carneiro era Primeiro-Ministro de Portugal.
Ao ver o filme, fiquei curiosíssima por ler dois livros: O Último Minuto na Vida de S., de Miguel Real, e Snu e a Vida Privada com Sá Carneiro, de Cândida Pinto. Há uns bons anos, tinha já lido o precioso Francisco Sá Carneiro, Solidão e Poder, de Maria João Avillez, escrito mesmo no início da década de 80 e, por isso, com a impressão em cima do tempo. De um outro tempo.
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