Num destes dias, uma querida amiga desafiou-me e a uns quantos amigos em comum a formar um clube de leitura e, para que tal ganhasse desde a primeira hora suficiente credibilidade (só a vontade partilhada de ler não chegaria a tanto), ditou-nos sem demoras o primeiro título: Submissão, de Michel Houellebecq. Lancei-me então nesta leitura, não só entusiasmada com a ideia de poder discutir entre amigos um livro lido ao mesmo tempo, mas também porque em tempos me desafiara a ler autores de todas as nacionalidades e, na verdade, contam-se já vários anos desde que passei os olhos por um escritor francês.
Em França, precisamente, Michel Houellebecq é simultaneamente amado e odiado, surgindo como um dos autores atuais mais controversos, mas também mais lidos e traduzidos. Em 2010, com o prémio Goncourt atribuído ao seu livro O mapa e o território, Houellebecq foi reconhecido com o mais prestigioso galardão da literatura francesa. O seu estilo desalinhado com a convenção dos clássicos franceses vem confirmar, pois, uma maleabilidade maior do que a previsível a ter em conta pela potência europeia no campo literário.
Na Submissão, Houellebecq transporta-nos para 2022, numa Paris onde um professor universitário de literatura do século XIX cumpre desencantado uma rotina académica sem histórias dignas de nota, apenas com a exceção de um ou outro romance com mulheres com cada vez menos anos que os seus 40 e tal. Fora das portas da universidade, corriam umas eleições presidenciais sui generis. O então recém-criado partido da Fraternidade Muçulmana, liderado por Mohammed Ben Abbes, conquista simpatizantes a olhos vistos e, com um debate político aceso, mesas de voto tomadas de assalto e contra as primeiras expectativas (ou quaisquer outras), acaba por estabelecer-se no poder. Uma nova ordem nasce, sem tréguas para a alternância democrática tão fatal para a própria sobrevivência das democracias ocidentais.
O país, até aí sintonizado com reality shows e conteúdos sobre celebridades pouco abonatórios para um certo grau intelectual, logo se apercebe da mudança de paradigma político e governamental. Mas até o poder ganhar essa nova ordem, François, o personagem principal, é afastado da universidade e procura em alternativa num ambiente campestre a escapatória feliz, que não chega a realizar-se. Logo que o poder muçulmano se instala, François é recolocado na nova universidade Paris-Sorbonne (financiada por um príncipe saudita) e então aí uma nova fase, melhor dizendo, uma nova vida surge. Com uma obrigação (praticamente sem opção possível), pelo meio. Aqui é onde o livro termina.
Se quisermos voltar ao início da narrativa, é-nos dado o foco num François que já numa «triste juventude» se fazia acompanhar do escritor e crítico de arte francês Joris-Karl Huysmans, a quem dedicaria mais tarde a sua tese de doutoramento, defendida na Universidade de Paris IV – Sorbonne. Em determinado momento, no livro, é dito: «É curioso (…) como ficamos próximos dos autores a quem consagrámos o início da nossa vida».
Tal como François, Huysmans permaneceu sempre solteiro. Mas, ao contrário de François, ateu, Huysmans surge relevante sobretudo pela sua conversão religiosa. A sua obra, eminentemente uma apologia da arte cristã, constitui um espólio riquíssimo sobre a tradição e o pensamento cristãos do século XIX. E, à medida que o romance de Houellebecq avança, vamos conhecendo melhor François e os seus paralelos e assimetrias detetados na vida de Huysmans, com vantagem para a reflexão que se vai fazendo sobre a literatura: «(…) só a literatura nos pode dar aquela sensação de contacto com outro espírito humano, com a totalidade desse espírito (…)». François vai mais longe e diz que «(…) nunca nos entregamos, durante uma conversa, tão inteiramente como perante uma folha vazia, dirigindo-nos a um destinatário desconhecido».
Na sua Submissão, Houellebecq explora em paralelo o combate religioso e, com a ironia que lhe é naturalmente inerente, a sujeição e a dedicação – na verdade, a submissão, não havendo palavra melhor – das mulheres face aos homens. Chega a realçar que «(…) o máximo da felicidade humana reside na submissão mais absoluta», fazendo o paralelo da submisso da mulher ao homem à «(…) do homem a Deus, tal como é encarada no islão».
Este romance de Houellebecq, que através do título Submissão lança o principal tópico de abordagem para as questões essenciais que coloca, materializa um importante ponto de partida para refletir o sistema político tradicional das democracias do Ocidente, destinadas a uma alternância contínua e desde tempos imemoráveis entre o centro-esquerda e o centro-direita, e os processos de voto a ele subjacentes. Mas é, sobretudo, uma reflexão sobre as idiossincrasias das relações entre o Ocidente e o Oriente e a sobrevivência da própria Europa. É uma pergunta política, e ao mesmo tempo cultural e identitária, à própria Europa e à possibilidade (evidência?) de a mesma ter, afinal, já morrido e não ter sequer condições para se salvar.
Houellebecq é, de facto, um pensador temerário. Venha o próximo deste clube de leitura!
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