Fotografias da artista com cortesia de Rui Palma.

 

S urma. A designação que atribuiu ao projeto a solo lançado em 2015 é o nome artístico de Débora Umbelino. A jovem que nasceu e cresceu em Vale do Horto e que estudou em Leiria, onde, em 2014, venceu o ZUS! com os Backwater & The Screaming Fantasy. No Hot Club, apurou a técnica de jazz, com especialidade em contrabaixo e voz. Em 2017, com o lançamento do seu primeiro disco, “Antwerpen”, Surma ganhou reconhecimento e estatuto entre os valores da música nacional, tendo visto uma das suas canções, “Hemma”, escolhida pela Sociedade Portuguesa de Autores como a melhor daquele ano. Para uma merecida projeção crescente contaram várias residências colaborativas, a assinatura da banda sonora do filme “Snu” e a participação, que a levou à final, da edição de 2019 do Festival da Canção. Só nos últimos dois anos, protagonizou 200 atuações ao vivo, em 16 países. No momento em que lança o seu novo álbum, “alla”, a leiriense que encantou o mundo empresta a esta conversa o tom original da voz com que canta.  


Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria. Deu-se aqui o primeiro concerto da digressão de apresentação de “alla”. Que significado tem começar em casa? 

Tinha que começar em casa, não poderia ser de outra forma. Apesar de estar a viver em Lisboa, há 11 anos, é em Leiria que componho tudo e que tenho a minha família, um suporte emocional enorme para mim. Os meus pais são uma grande inspiração e sempre me apoiaram mais do que ninguém. Foi muito emotivo ver todos os meus amigos (muitos deles vieram de propósito de Lisboa), a minha família, amigos e colegas da editora [Omnichord Records]. É casa. Não poderia começar de outra forma.

Nos concertos da tour deste novo álbum, conta com a participação do baixista João Hasselberg e do percussionista Pedro Melo Alves. Como descreve esta colaboração com a “solista”? 

Já conheço o João e o Pedro há sete ou oito anos e sempre me inspiraram imenso. São músicos inacreditáveis e já há imenso tempo que queria fazer um projeto com ambos. Assim que comecei a fechar o “alla”, pensei para mim mesma que só faria sentido transpor todas as ambiências e toda a atmosfera do álbum para o palco ao lado do Pedro e do João. Já tínhamos tocado juntos, em Coimbra, com o álbum “Antwerpen”, e criou-se uma química inacreditável, em palco e fora dele. Foi automático, para mim, tê-los comigo nesta nova fase de “Surma”. Ganha todo um outro sentido.

Quis dar às pessoas um trabalho que mostrasse a disrupção do “ideal” que a sociedade tem em mente para sermos aquilo que não somos: o ter que assumir uma personalidade, diferente da nossa, para agradar a todos.

Em sueco, “alla” significa todos. É um manifesto à diversidade e à capacidade de inclusão que a arte, e a música em particular, devem procurar advogar?   

Sem dúvida, mas também uma descoberta mais pessoal e interna do meu eu. Quis dar às pessoas um trabalho que mostrasse a disrupção do “ideal” que a sociedade tem em mente para sermos aquilo que não somos: o ter que assumir uma personalidade, diferente da nossa, para agradar a todos. E ainda dar uma maior importância a essa quebra de géneros e de identidades, porque passei várias vezes por isso, na minha adolescência, e aprendi que ser vulnerável é uma ajuda enorme para nos ouvirmos a nós mesmos e ajudar os outros que estão a passar por situações mais infelizes. É um grito de libertação, o deixar para trás as memórias menos boas, mas que, no fundo, nos fizeram as pessoas que somos hoje.

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A experimentação, a vulnerabilidade e a descoberta (palavras suas) que encontramos neste trabalho pressupõem, ao lado da força da cultura, também esse laboratório que é a arte, certo? 

Sem sombra de dúvida. Nestes cinco anos, tive espaço para explorar e maturar vários temas, sobre os quais já queria falar há imenso tempo. Posso dizer que houve uma evolução enorme pessoal, que me fez crescer bastante a nível artístico e que me abriu esses horizontes para poder criar e falar com mais segurança e sem medos. Essa descoberta mais interna aconteceu naqueles três meses horríveis, em que todos parámos por causa da pandemia. Não gosto muito de trazer o assunto pandemia às conversas de hoje, mas foi o que aconteceu. Esses meses foram essenciais para poder explorar o meu eu interno e para aprender mais sobre as várias temáticas que queria dar ao álbum. Depois, foi o maturar de tudo isso em estúdio, ao lado do Rui Gaspar (o produtor de “alla”), num modo muito terapêutico. Foi a primeira vez que compus um álbum dentro deste mood mais leve e mais segura comigo mesma.

Nunca consegui definir muito bem o meu estilo musical, nem quero. Por norma, não gosto de rotular o que quer que seja na minha vida quotidiana.

Jazz, rock, eletrónica… Consegue definir o seu estilo musical? Ou não importa para si a classificação?   

Nunca consegui definir muito bem o meu estilo musical, nem quero. Por norma, não gosto de rotular o que quer que seja na minha vida quotidiana. Costumo dizer que é noisy – lo.fi – bedroom music, porque importa mais a forma como produzo e onde componho do que direcionar para um género musical em si. Acho que catalogar algo tira muito da personalidade e do que queremos levar às pessoas.

Que bagagem lhe deu o palco do Festival da Canção?

Muita. Costumo dizer que cresci muito no Festival da Canção e que me deu muita experiência para recriar várias situações nos dias de hoje. Foi a primeira vez que construí a minha própria equipa e que tive a oportunidade de desenvolver um staging à minha maneira, o que também acabou por acontecer neste novo álbum. Partilhei esta experiência inacreditável ao lado de amigos que me são tão queridos e que me inspiram todos os dias. Posso dizer que o Festival da Canção foi das melhores experiências que tive.

Viajar é um vício que guardo desde muito miúda e acho que tenho vindo a abrir uma parte do meu cérebro, onde coloco tudo, e, depois, o meu subconsciente encarrega-se do resto.

O que leva de Leiria para as suas atuações internacionais e que mundo traz quando regressa?  

Não penso muito nisso. Acho que o meu subconsciente encarrega-se de fazer tudo isso muito automaticamente. Influencio-me bastante com as viagens que faço. As pessoas, a cultura de vários países, a comida. De um modo direto, não consigo responder a esta questão, porque me inspiro em diversas coisas e nunca me foco em apenas uma para criar. Viajar é um vício que guardo desde muito miúda e acho que tenho vindo a abrir uma parte do meu cérebro, onde coloco tudo, e, depois, o meu subconsciente encarrega-se do resto.

Pergunto, para finalizar, à Débora Umbelino de onde vem o nome (musical) Surma?

“Surma” vem de um povo indígena proveniente da Etiópia. Na altura, estava a ver um documentário, na BBC, sobre povos indígenas, e “Surma” foi o segundo povo a ser falado. Fiquei logo apaixonada pelo modo como levam a vida, muito terra à terra, sem pensar em bens materiais, e muito ligados à família e às relações humanas. E era esse o sentimento que queria dar ao projeto. Não queria fazer só um projeto de música, mas, sim, um que chegasse às pessoas a um nível muito mais pessoal e mais íntimo. Foi logo automático, para mim. Decidi fechar o nome de seguida e também quis fazer uma homenagem aos “Surma”. Fiquei mesmo muito ligada pela maneira como vivem e por todo o amor e gratidão que sentem pelo universo e pelo seu povo.

E que peso tem o silêncio para a Surma?  

Posso dizer que o silêncio é tudo para mim. É onde me inspiro em tudo. Para criar, para pensar, para fazer uma limpeza comigo mesma. É o meu submundo de eleição para ser eu própria e para me poder elevar a um outro patamar, que me permite conectar a outras pessoas.

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