A História evolui e valida-se, desde que a humanidade existe, por uma cosmovisão que ora se centra no poder do homem e do seu inquestionável conhecimento, ora se debruça e entrega a uma espiritualidade ou a um sagrado proponentes, numa compensação para a finitude humana e num sentido para o que se é. Uma espécie de alternância política entre dois poderes que, porventura, podemos descobrir e percecionar mais complementares do que antagónicos e que, sabendo o que hoje sabemos, talvez mesmo em nada se sobreponham. Numa altura em que nos regozijávamos fazia tempo pelas ambições científica e epistemológica que nos trouxeram, qual país das maravilhas, até ao admirável século XXI, somos confrontados de súbito com a esmagadora presença, galopante, de um invisível e silencioso vírus que a todos nos votou ao nosso lugar de origem: o essencial.
Diz-nos o sociólogo francês Alain Touraine que os principais desafios do século XXI são eminentemente culturais, no sentido mais abrangente que podemos endereçar à cultura. A cultura que nos situa do ponto de vista ético e moral e que nos entrega um quadro de valores a partir do qual ganhamos a bússola para ser. A orientação para nos relacionarmos, interagirmos, comunicarmos e vermos o mundo, numa perspetiva humanista. Essencial. A contraciclo com o utilitarismo, o supérfluo, o volátil e o descartável que nos conduziram a este mundo globalizado mas desconexo. Venéfico, virulento. D. José Tolentino Mendonça, na sua crónica de 28 de março na revista E, do Expresso, fala-nos na necessidade de «uma nova sabedoria, de modelos mais integrativos, de visões capazes de dialogar com a inteireza da pessoa humana nas suas diversas dimensões». Talvez este tempo de isolamento e emergência social nos realce uma predisposição para essa sabedoria. Esperemos é que, como o próprio D. José Tolentino Mendonça alude no mesmo texto, referindo-se a Albert Camus (1913-1960), a “peste” não se vá embora com o coração do homem por modificar.
É uma questão humanista, civilizacional, de cidadania. Urgente. Seríssima. Se tornarmos viral este sentido para a cultura e o soubermos manter na base da pirâmide, ficaremos mais capacitados para investir no conhecimento e praticar o aprender, sem que isso coloque em causa a dignidade de todos os outros seres, da natureza, da chamada casa comum. É nesta linha que o Entre | Vistas se posiciona como uma plataforma digital de comunicação e cultura. Não por praticar um conjunto de conhecimentos e áreas do saber, mas porque os conhecimentos e as áreas do saber que pratica procuram partir de um património de valores, enquanto chave para interpretar o humano. E criar aí as fundações do conhecimento.
Não será por acaso que encontramos em duas das fontes principais da cultura europeia, o duplo poema épico grego de Homero, a Ilíada e a Odisseia, os dados de significação fundamentais para o que fomos, para o que somos, para o que seremos. Aquiles, na Ilíada, tornou-se o combatente mais importante. Ainda assim, viria a ser mortalmente atingido por Páris. A sua mãe mergulhou-o à nascença no rio Estige para o tornar invulnerável, mas foi no calcanhar – o sítio onde o segurou para o mergulhar – que Páris o atingiu. Também na Ilíada os gregos construíram um célebre cavalo de madeira e espalharam a notícia de que quem se tornasse proprietário de tal cavalo sairia invencível. Mas no interior do cavalo seguiam velados os melhores guerreiros. Seriam eles a abrir as portas da cidade. Troia saíra arrasada. Na Odisseia, para o seu regresso a casa, Ítaca, Ulisses embarcou numa aventura sem precedentes até chegar aos braços da sua mulher, Penélope, e tendo então votado a uma chacina atroz vários dos pretendentes que a mesma teve ao longo dos 20 anos da sua ausência. Nos nossos tempos, James Joyce deu o mesmo destino a Leopold Bloom e Molly.
Far-nos-á falta um mergulho nos clássicos para nos conhecermos e reconhecermos no melhor e no pior. Mergulhemos é carregados de cultura e apetrechados desse tal quadro irrepreensível de valores que nos permitirá que este voltar ao lugar essencial, que um vírus que desconhecíamos agora nos vaticina, não seja uma viagem vã sem lugar a modificar o coração, nos termos de Camus.
Tenho esperança de que voltar aqui significará, até, um poder voltar a sonhar e ao que nos escreveu Fernando Pessoa no Desassossego, com o seu pseudónimo Bernardo Soares: «Só o sonho vê com o olhar».
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