O Corvo à vista

O relato desta viagem começa entrelaçado na sequência noticiosa matinal do dia 26 de agosto de 2024: um sismo com magnitude de 5,3 na escala de Richter, com epicentro a 58km a oeste de Sines. Sentido em Portugal, Espanha, Gibraltar e Marrocos. Nesse mesmo dia em que a terra tremeu, num sufoco asfixiante que uniu os portugueses em torno do que podia ter acontecido de pior [mas não aconteceu], voámos rumo aos Açores, para conhecermos as duas últimas ilhas que nos faltavam, das nove: Corvo e Flores. Na primeira escala, em Ponta Delgada, perguntaram-nos imediatamente sobre o que sentíramos em Lisboa: «Eu senti tudo a tremer, no aeroporto, enquanto aguardávamos pelo nosso voo para cá, mas achei que seria um avião a aterrar com maior intensidade». Na verdade, na fila formada para entrarmos no avião, várias histórias estavam já a desembrulhar-se, referindo irmãos e pais e tios e amigos cujo testemunho já havia chegado sobre como viveram o soluço em que a terra mergulhou, a fazer lembrar a fragilidade da nossa localização, entre o Atlântico e a mancha continental de uma Europa em sobressalto.

A conversa no café, na ilha de São Miguel, permitiu confirmar que os familiares de todas as pessoas que por ali se encontravam estavam a salvo. E que nem sempre é nas ilhas açorianas que a terra treme [nem sempre é]. Um novo voo, depois de uma curta viagem de táxi até ao aeroporto, com novas histórias contadas pela pronúncia impenetrável micaelense, colocou-nos na rota da segunda escala, desta vez técnica, no Faial. Aqui, foi povoada a memória pelo rosto de Genuíno Madruga, o proprietário do restaurante Genuíno, na praia do Porto Pim, na Horta, onde estivemos noutro verão, com ouvidos curiosos sobre as duas voltas ao mundo já concretizadas por este homem que não fica a dever nada aos sonhos. Também me atravessou no espírito o livro que li há tempos, de Antonio Tabucchi, A Mulher de Porto Pim, que cruza a identidade humana com a visceral natureza das ilhas. E um novo voo, entre a Horta e a Vila do Corvo, aterrado na pista mais pequena onde alguma vez desembarquei, notabilizou a chegada ao Corvo, que ganha um primeiro ponto de observação num terraço com vista privilegiada sobre os metros escassos onde os aviões ali aterram para trazer pessoas, mercadoria e a curiosidade aventureira dos que, como nós, chegam pela primeira vez a esta ilha onde a Europa termina ou talvez comece.

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Dois dias inteiros permitiram conhecer um povo carregado de personalidade, história, resiliência e sabedoria. Com pontos culturais bem equipados, bons guias e uma desconcertante experiência de confiança depositada no outro [ser humano]. Quando ligámos ao Sr. Carlos Reis, a quem havíamos contratado um tour [Carlos Reis Tour] para percorrer a ilha, depressa combinámos um ponto de encontro para que nos levasse ilha adentro, até ao famigerado Caldeirão. Não nos deu qualquer chance de nos conduzir até lá. Ao invés disso, endireitou-nos nas nossas mãos a chave de um carro particular que nos emprestou, para que fôssemos por nós aonde quiséssemos. «Levem o tempo que quiserem», disse com uma dificuldade visível de passar a voz pelas sílabas das palavras utilizadas, aparentemente mais debilitado pelo tubo que leva ao pescoço para melhor transportar a respiração.

Daquele ponto de encontro, seguimos para o Caldeirão, com a sorte que as condições atmosféricas ofereceram de mão beijada para imaginarmos a profundidade de cerca de 300 metros daquele que é o antigo vulcão do Corvo, preponderante na paisagem avistada no voo de saída em direção às Flores, feito no dia a seguir. Naquele momento, enquanto ali estávamos com o Caldeirão à beira dos nossos joelhos, permaneceu a sensação singular de tranquilidade, apenas interrompida pelas aves migratórias raras que avistámos e admirámos, mesmo sem lhes conhecermos o nome ou a proveniência. É soberana a diversidade zoológica e também botânica desta ilha onde [com tamanha probabilidade] foi fundado o significado de ambientalista num tempo em que a mesma ainda não tinha sido inventada. No regresso à Vila do Corvo, percebemos rapidamente que a estrada que nos introduziu no interior da ilha serve praticamente apenas para ir ao Caldeirão, circundar a Praia da Areia e ziguezaguear pelo núcleo antigo da vila, onde se encontram concentradas as várias atrações que constituem o Ecomuseu do Corvo: a Casa do Tempo; a Casa da Memória; a Atafona do Lourenço; o Centro de Interpretação Ambiental e Cultural do Corvo; e o Espaço Cultural Multiusos. Entrar nestes lugares, não tenhamos dúvidas [nem medo], mexe com a nossa vida.

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Na Casa do Tempo, que oferece desde logo a partir da sua designação uma viagem identitária e histórica pelo Corvo e a fajã onde se estabeleceu a Vila do Corvo, abrimos simbolicamente um dicionário sobre a casa corvina [da pedra do sopé da montanha, criaram as casas onde moram], os costumes e tradições e, fundamentalmente, o caráter resiliente e a têmpera dos corvinos. O sentido comunitarista e o espírito de entreajuda ímpares. Conhecida nos primeiros tempos como a Ilha do Marco, pela sua posição estratégica entre o Novo e o Velho Mundo, o Corvo foi ponto de passagem nas grandes rotas atlânticas e, por isso mesmo, alvo de ataques de piratas e corsários. Uma invasão de dez naus de piratas berberes desencadeou uma batalha de 11 horas que, dada a orografia da ilha e a posição vantajosa no alto da ravina, aliadas [rezando a história] à intervenção milagrosa de Nossa Senhora dos Milagres, legitimou para a atual Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Milagres o lugar privilegiado de culto e adoração. Esmagados ao longo de 4 séculos pelos tributos senhoriais, aprenderam a resolver os seus problemas, mesmo que isso tantas vezes lhes tenha exigido desafiar a própria escarpa e falar com os maiores representantes do poder, endereçando pedidos [que foram ouvidos] para que lhes fossem aliviados os impostos.

Num jantar apreciado no snack bar Irmãos Metralha, que tem como proprietário o filho do Sr. Carlos Reis, ficamos entregues a uma família acolhedora, trabalhadora, briosa das suas gentes e dos seus costumes de uma vida inteira. Entre os 17km quadrados do Corvo, talvez situasse o epicentro da ilha no Largo do Outeiro, na Casa do Espírito Santo. Uma mulher de que muitos foram falando nas várias visitas guiadas aos equipamentos culturais do Ecomuseu do Corvo guardava a chave desta casa, a principal da Vila do Corvo. Não chegámos a conhecer a mulher, com pena. Mas ficámos a saber que esta mulher que guarda esta chave equivale [imaginei imediatamente esta comparação] às mulheres a que Raul Brandão se referiu que guardavam a chave da caixa, na lavoura. Ter a chave desta caixa, dizia, é ter o «ceptro do prestígio». E daí a importância, e o carisma, desta mulher que não chegámos a conhecer, mas que nos ficou impreterivelmente na memória. A propósito deste povo que hoje não chega a contar 400 pessoas, mas que, de novo nas palavras de Raul Brandão, «é um mundo».


Não há nada como as Flores

Quase sempre, na passagem por uma destas ilhas, passamos pela outra, dada a proximidade que as torna cúmplices, como nos conta a História, não apenas vizinhas. O Corvo e as Flores, que compõem o Grupo Ocidental do Arquipélago dos Açores, foram ambas descobertas por Diogo de Teive e Pedro Velasco, em 1452. Dizem muitos açorianos que não há nada como as Flores. Na viagem inicial de táxi que nos guiou para o aeroporto, ainda em São Miguel, na qual desvendámos a que ilhas íamos, nem a pronúncia difícil de decifrar deixou escamotear os adjetivos rasgados dados pelo motorista às Flores: «É a coisa mais bonita que alguma vez vi. A natureza é soberana nos Açores, mas nas Flores encontramos a versão acabada da beleza». Se isto não é um cartão de visita auspicioso, não sei o que é.

Imaginei, na aterragem, em Santa Cruz das Flores, uma mulher avistada no porto, entre homens pescadores, a organizar sabiamente as várias redes em mãos: «É a primeira vez nas Flores?». «Sim, é, e com muita expectativa». No seu sorriso caloroso, disse: «Espere até ver o Poço da Ribeira do Ferreiro ou o do Bacalhau. E os florentinos têm têmpera. Não se vai esquecer do que vai ver por aqui». Respondi com um sorriso contemplativo, encantada com a palavra “têmpera”. O que cada palavra nos diz é sempre acrescentado pela expressão corporal, o tom da voz e todos os movimentos da própria pele. Aqueles pedaços de nós que nem o espelho nos conta, porque na relação com o espelho tendemos a reparar no que queremos. Naquela senhora que imaginei para a nossa chegada, pela curiosidade aumentada naquela viagem de táxi (ainda) em Ponta Delgada, imaginei decalcadas [só mais tarde realizei isso] todas as ilhas dos Açores, em cada uma das suas rugas e saliências do rosto, uma ilha açoriana, com as suas histórias singulares.

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Uma miríade de hortênsias, falésias dramáticas e miradouros para a observação cabal de cada paisagem prepararam-nos, com um toque performativo, para a chegada às Caldeiras Funda (verde) e Rasa (azul). De um ponto estratégico através do qual avistámos ambas aos mesmo tempo, rodeados pela Reserva da Biosfera da Ilha das Flores, fomos confrontados com um lugar que nos valida [ao mesmo tempo que, curiosamente, nos reabilita a fé] a pequenez de que somos feitos. Ali, somos reabastecidos pela força oriunda do interior da terra, o som do silêncio contrastante com o nosso dia a dia urbano, a fortaleza da natureza corroborada na reaprendizagem do respirar. Rumámos depois à Fajã Grande, a localidade mais ocidental da Europa. De novo, como na cena de um filme, fomos colocados, quando chegados ao Poço do Bacalhau, diante de uma obra de arte arquitetada como quase tudo nos Açores, com a chancela da mãe natureza. Aqui, apreciámos uma cascata altíssima, com cerca de 90 metros, constituída de força motriz para abastecer um ano inteiro de vida humana. Aqui, o tempo pede-nos um tempo e destitui-nos de qualquer verbo. Aqui, paramos e redesenhamos a nossa coreografia interior. Não há quem perceba (bem) o que nos aconteceu quando saídos daqui. Mas nós sabemos a razão pela qual saímos transformados.

Num outro ponto das Flores, chamados a visitar mais um lugar icónico, o Poço da Ribeira do Ferreiro, percorremos dezenas de metros num percurso morfologicamente exigente, até chegarmos à paisagem idílica, saída – parece – de um qualquer país das maravilhas. Alice não se impressionaria, é certo. Mas para cada um de nós, sendo a primeira vez, o olhar estreante serviu-se do bitaite de um fotógrafo presente, de máquina profissional em punho: «O que estamos a ver é o Poço da Ribeira. Eles é que inventaram um terceiro nome, para dar mais força [política] ao lugar», disse-nos. Uma parede de cascatas infinitas cai sobre as encostas cobertas de verde intenso, formando pequenas lagoas na base. Uma das minhas grandes amigas já me tinha introduzido este lugar como um dos melhores de sempre. Ficámos a apreciar com o tempo multiplicado que ali se conta.

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São também pontos obrigatórios, nas Flores, a Lagoa da Lomba e as Lagoas Comprida e Negra e, ainda, as Caldeiras Branca e Seca. Entretanto, fomos encontrando miradouros a recordar-nos a ilha da qual viemos, o Corvo, salientando a impressionante proximidade entre ambas. Nos momentos de paragem, votados à natureza gastronómica de que também se faz a experiência turística florentina, desde logo na Aldeia da Cuada, com um belíssimo restaurante no interior, no Por do Sol ou na Casa do Rei, imaginámos a rota a nado de uma ilha para a outra. E as diferenças identitárias entre as duas. Daí surgiu destacada, mesmo no último dia, no Museu de Santa Cruz das Flores, a influência francesa que a ilha das Flores recebeu, por acordo entre Portugal e França celebrado em 1964, para a instalação de uma estação de rastreio de satélites e mísseis lançados pelo território francês. Ao longo de mais de 20 anos, dezenas de militares e as respetivas famílias foram integrados nas Flores, contribuindo decisivamente para reabilitar a economia da ilha, o seu desenvolvimento social, os costumes e uma irreverência instalada de que ainda hoje se ouve falar, embora como rasto de memória.  Assistimos, hoje, aliás, a uma vida pacata nas Flores.

A mais pacata de todas que conheci foi a Fajãzinha, o lugar onde gravei o vídeo de divulgação deste texto e onde pernoitámos. O lugar em que, todos os dias, assisti às mesmas pessoas [muito poucas] a atravessar o mesmo percurso [muito curto] com o mesmo destino [aparentemente comezinho]: a horta em frente à igreja matriz. E ao seu caminho de volta para casa. Aqui, detive-me nestas pessoas, na sua missão de cada dia e na dignidade que cada passo de um trajeto curto pode ter no final do caminho. De novo imaginei a mulher florentina de volta das redes dos pescadores, de fio em fio como quem desenrola um novelo, adiantada na sabedoria de que, para os florentinos, a vida é um dom. E que, por isso, «não interessa o tamanho do caminho se o tivermos percorrido com sentido e determinação», disse-me convicta a mulher que me profetizou vários regressos aos Açores.

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